top of page

Lições de uma tragédia: o que Rei Lear ensina sobre negociações, decisões e liderança.

  • Alessandra Corrêa
  • 20 de mai.
  • 4 min de leitura

"King Lear, Ato I, Cena I" por Edwin Austin Abbey (1902)
"King Lear, Ato I, Cena I" por Edwin Austin Abbey (1902)

 

Na peça Rei Lear, de Shakespeare, o Rei, já idoso, decide dividir seu reino entre suas três filhas com base na demonstração de afeto de cada uma. Goneril e Regana o adulam. Cordélia, a filha mais leal, responde com sinceridade. Sua franqueza provoca a ira do pai, que a deserda. Quando Kent, seu conselheiro fiel, tenta alertá-lo, também é banido. Essa cena oferece muitos aprendizados aplicáveis a negociações — diretas ou mediadas — e à tomada de decisões. Ela revela falhas humanas atemporais — e oferece valiosas lições para quem atua com processos decisórios.


A primeira lição a ser tirada é sobre como lidamos quando ouvimos o que não queremos ouvir, quando recebemos um feedback negativo ou quando uma pessoa leal a nós tem opiniões e posições diferentes das nossas.


Uma prática muito importante para aumentar as chances de ter bons resultados em uma negociação de várias etapas, negociações mais longas, é o debriefing após uma rodada. Nessa análise, o líder e seu time devem compartilhar impressões, observações e conclusões sobre diferentes aspectos da negociação.


Sobre o outro lado, é importante responder algumas perguntas: Quais as ações e reações do outro lado? Estão buscando uma negociação mais hostil ou mais amigável? Qual a importância eles parecem dar ao relacionamento entre as partes? O comportamento deles está em harmonia com o que eles dizem? Essas e outras questões são fundamentais para uma análise sólida e para uma preparação eficaz da próxima etapa.


Tão importante quanto a análise do outro lado é a autoanálise. Onde o time acertou? Onde errou? O que pode ser feito de forma diferente na próxima vez? As falas estavam adequadas? O tom e a assertividade estavam adequados? As informações que foram compartilhadas eram oportunas ou foram excessivas?


Durante essa autoanálise é importante saber ouvir críticas de outros membros do time. E todos devem fazer uma reflexão essencial, principalmente as pessoas em posição de liderança: como eu reajo quando ouço o que não quero ouvir? Estou criando um ambiente seguro para feedbacks verdadeiros?


Outro alerta importante diz respeito ao risco de nos cercarmos de pessoas que apenas dizem o que queremos ouvir e de criarmos um ambiente em que não há segurança psicológica para que as pessoas compartilhem suas opiniões sem receio de serem punidas por dar opiniões dissonantes com a da maioria ou com a do chefe.


Lear entrega toda a sua fortuna às duas filhas bajuladoras e traiçoeiras, pedindo em troca apenas que cuidem dele na velhice. Como esperado, as filhas traem sua confiança assim que tomam posse de seus bens e títulos. Lear, traído e desamparado, perde a razão, enlouquece.


Apenas ouvir elogios, concordâncias e “sim” nos distancia da realidade, infla nosso ego e nos deixa mais frágeis e mais suscetíveis a manipulações. O ego é péssimo conselheiro e nos leva a tomar decisões ruins. Já escrevi sobre os riscos de decisões guiadas pelo ego, como você pode ler nesse texto.


Além das questões emocionais e relacionais, há também fatores mentais que influenciam a decisão de Lear, o que nos leva a uma terceira lição que podemos tirar dessa história: o risco dos vieses cognitivos. O Rei é vítima de alguns vieses cognitivos em sua tomada de decisão. Lear sucumbe ao viés da confirmação – nossa tendência a dar valor a opiniões e informações que corroborem o que pensamos e a não atentar às que nos contradizem. Além disso, ele também cai na armadilha da escalada do comprometimento quando expulsa Kent de seu reino.


Vieses cognitivos são comuns a todos, estar consciente de sua existência é um grande passo na direção de evitar ou de minimizar seus efeitos. Falo sobre alguns deles neste outro texto.


Finalmente podemos aprender com o famoso Rei as consequências de decisões impulsivas e baseadas em emoções fortes. Há um famoso provérbio que diz que não devemos fazer promessas quando muito felizes, não discutir quando estivermos com raiva e nem tomar decisões quando muito tristes. Emoções devem ser sentidas e não reprimidas, mas elas não são boas guias. O ideal é deixar a poeira baixar, refletir, ouvir outras opiniões quando couber e somente então tomar uma decisão.


Ao reagir com raiva e vaidade, Lear rompe laços valiosos e entrega poder a quem não o respeita. Sua trajetória é um alerta sobre os riscos de decisões impensadas — e sobre a importância de cultivar ambientes onde a verdade possa ser dita sem medo. Se queremos decisões melhores — em qualquer campo — precisamos cultivar a coragem de ouvir o que não nos agrada, sustentar conversas difíceis e resistir aos impulsos do ego.


Casos reais ajudam a ilustrar essas lições. A Kodak, por exemplo, foi pioneira na criação da câmera digital, mas sua liderança ignorou os alertas internos sobre a necessidade de adaptação. Apegados ao modelo tradicional, preferiram ouvir as vozes que reforçavam o sucesso passado — até que a disrupção os alcançou. Ignorar visões dissonantes custou caro.


Outro caso emblemático de decisões malconduzidas — agora no setor público — é o desastre do ônibus espacial Challenger, em 1986. Engenheiros da NASA e da empresa terceirizada Morton Thiokol haviam alertado para os riscos de falha nos “O-rings” em temperaturas muito baixas. Apesar dos avisos técnicos, a decisão de seguir com o lançamento foi mantida, influenciada por pressões políticas e de cronograma. A tragédia mostrou como ignorar alertas dissonantes, por orgulho institucional ou medo de enfrentar conversas difíceis, pode custar caro. O caso se tornou referência mundial sobre os perigos do pensamento grupal, da escalada do comprometimento e da ausência de um ambiente psicologicamente seguro para a divergência.


A Enron seguiu caminho parecido. Seus líderes criaram uma cultura interna baseada em competição extrema, ocultação de informações e punição a quem questionasse decisões da alta direção. Muitos executivos sabiam dos riscos contábeis e da fragilidade dos resultados, mas o medo de retaliação e a cultura de silêncio impediram alertas eficazes. Assim como em Rei Lear, a ausência de um ambiente seguro para a verdade e o culto à imagem do líder contribuíram para uma queda devastadora.


Liderar bem exige mais do que tomar decisões: exige escuta aberta, especialmente diante de opiniões que desafiam as nossas certezas. Requer coragem para acolher divergências e humildade para reconhecer que o ego, quando fala mais alto, nos afasta da realidade. Incorporar vozes dissonantes não fragiliza a liderança — fortalece a qualidade das decisões e a confiança do grupo.



Por Alessandra Corrêa

Comments


bottom of page