Lições de uma tragédia: o que Rei Lear ensina sobre negociações, decisões e liderança.
- Alessandra Corrêa
- 20 de mai.
- 4 min de leitura

Na peça Rei Lear, de Shakespeare, o Rei, já idoso, decide dividir seu reino entre suas três filhas com base na demonstração de afeto de cada uma. Goneril e Regana o adulam. Cordélia, a filha mais leal, responde com sinceridade. Sua franqueza provoca a ira do pai, que a deserda. Quando Kent, seu conselheiro fiel, tenta alertá-lo, também é banido. Essa cena oferece muitos aprendizados aplicáveis a negociações — diretas ou mediadas — e à tomada de decisões. Ela revela falhas humanas atemporais — e oferece valiosas lições para quem atua com processos decisórios.
A primeira lição a ser tirada é sobre como lidamos quando ouvimos o que não queremos ouvir, quando recebemos um feedback negativo ou quando uma pessoa leal a nós tem opiniões e posições diferentes das nossas.
Uma prática muito importante para aumentar as chances de ter bons resultados em uma negociação de várias etapas, negociações mais longas, é o debriefing após uma rodada. Nessa análise, o líder e seu time devem compartilhar impressões, observações e conclusões sobre diferentes aspectos da negociação.
Sobre o outro lado, é importante responder algumas perguntas: Quais as ações e reações do outro lado? Estão buscando uma negociação mais hostil ou mais amigável? Qual a importância eles parecem dar ao relacionamento entre as partes? O comportamento deles está em harmonia com o que eles dizem? Essas e outras questões são fundamentais para uma análise sólida e para uma preparação eficaz da próxima etapa.
Tão importante quanto a análise do outro lado é a autoanálise. Onde o time acertou? Onde errou? O que pode ser feito de forma diferente na próxima vez? As falas estavam adequadas? O tom e a assertividade estavam adequados? As informações que foram compartilhadas eram oportunas ou foram excessivas?
Durante essa autoanálise é importante saber ouvir críticas de outros membros do time. E todos devem fazer uma reflexão essencial, principalmente as pessoas em posição de liderança: como eu reajo quando ouço o que não quero ouvir? Estou criando um ambiente seguro para feedbacks verdadeiros?
Outro alerta importante diz respeito ao risco de nos cercarmos de pessoas que apenas dizem o que queremos ouvir e de criarmos um ambiente em que não há segurança psicológica para que as pessoas compartilhem suas opiniões sem receio de serem punidas por dar opiniões dissonantes com a da maioria ou com a do chefe.
Lear entrega toda a sua fortuna às duas filhas bajuladoras e traiçoeiras, pedindo em troca apenas que cuidem dele na velhice. Como esperado, as filhas traem sua confiança assim que tomam posse de seus bens e títulos. Lear, traído e desamparado, perde a razão, enlouquece.
Apenas ouvir elogios, concordâncias e “sim” nos distancia da realidade, infla nosso ego e nos deixa mais frágeis e mais suscetíveis a manipulações. O ego é péssimo conselheiro e nos leva a tomar decisões ruins. Já escrevi sobre os riscos de decisões guiadas pelo ego, como você pode ler nesse texto.
Além das questões emocionais e relacionais, há também fatores mentais que influenciam a decisão de Lear, o que nos leva a uma terceira lição que podemos tirar dessa história: o risco dos vieses cognitivos. O Rei é vítima de alguns vieses cognitivos em sua tomada de decisão. Lear sucumbe ao viés da confirmação – nossa tendência a dar valor a opiniões e informações que corroborem o que pensamos e a não atentar às que nos contradizem. Além disso, ele também cai na armadilha da escalada do comprometimento quando expulsa Kent de seu reino.
Vieses cognitivos são comuns a todos, estar consciente de sua existência é um grande passo na direção de evitar ou de minimizar seus efeitos. Falo sobre alguns deles neste outro texto.
Finalmente podemos aprender com o famoso Rei as consequências de decisões impulsivas e baseadas em emoções fortes. Há um famoso provérbio que diz que não devemos fazer promessas quando muito felizes, não discutir quando estivermos com raiva e nem tomar decisões quando muito tristes. Emoções devem ser sentidas e não reprimidas, mas elas não são boas guias. O ideal é deixar a poeira baixar, refletir, ouvir outras opiniões quando couber e somente então tomar uma decisão.
Ao reagir com raiva e vaidade, Lear rompe laços valiosos e entrega poder a quem não o respeita. Sua trajetória é um alerta sobre os riscos de decisões impensadas — e sobre a importância de cultivar ambientes onde a verdade possa ser dita sem medo. Se queremos decisões melhores — em qualquer campo — precisamos cultivar a coragem de ouvir o que não nos agrada, sustentar conversas difíceis e resistir aos impulsos do ego.
Casos reais ajudam a ilustrar essas lições. A Kodak, por exemplo, foi pioneira na criação da câmera digital, mas sua liderança ignorou os alertas internos sobre a necessidade de adaptação. Apegados ao modelo tradicional, preferiram ouvir as vozes que reforçavam o sucesso passado — até que a disrupção os alcançou. Ignorar visões dissonantes custou caro.
Outro caso emblemático de decisões malconduzidas — agora no setor público — é o desastre do ônibus espacial Challenger, em 1986. Engenheiros da NASA e da empresa terceirizada Morton Thiokol haviam alertado para os riscos de falha nos “O-rings” em temperaturas muito baixas. Apesar dos avisos técnicos, a decisão de seguir com o lançamento foi mantida, influenciada por pressões políticas e de cronograma. A tragédia mostrou como ignorar alertas dissonantes, por orgulho institucional ou medo de enfrentar conversas difíceis, pode custar caro. O caso se tornou referência mundial sobre os perigos do pensamento grupal, da escalada do comprometimento e da ausência de um ambiente psicologicamente seguro para a divergência.
A Enron seguiu caminho parecido. Seus líderes criaram uma cultura interna baseada em competição extrema, ocultação de informações e punição a quem questionasse decisões da alta direção. Muitos executivos sabiam dos riscos contábeis e da fragilidade dos resultados, mas o medo de retaliação e a cultura de silêncio impediram alertas eficazes. Assim como em Rei Lear, a ausência de um ambiente seguro para a verdade e o culto à imagem do líder contribuíram para uma queda devastadora.
Liderar bem exige mais do que tomar decisões: exige escuta aberta, especialmente diante de opiniões que desafiam as nossas certezas. Requer coragem para acolher divergências e humildade para reconhecer que o ego, quando fala mais alto, nos afasta da realidade. Incorporar vozes dissonantes não fragiliza a liderança — fortalece a qualidade das decisões e a confiança do grupo.
Por Alessandra Corrêa
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